Leveza - Seis propostas para o próximo milênio
Reflection Julie Tremblay
Ao ser convidado a fazer as “Charles Eliot Norton Poetry Lectures, que seriam desenvolvidas ao longo do ano de 1985-86, na Universidade de Harvard, Cambridge, Ítalo Calvino decide-se por tratar de valores literários que mereciam ser preservados no curso do novo milênio que se aproximava.
Valores como, Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade. O sexto valor, “Consistência”, não chegou a ser desenvolvido, nem foram realizadas as conferências, devido sua morte prematura.
Dessas conferências surge o livro, ”Seis propostas para o próximo milênio”, cujo primeiro ensaio é a Leveza.
Leveza:
Calvino afirma, que depois de 40 anos escrevendo ficção, reconhece que seus esforços sempre foram no sentido de subtrair o peso das figuras humanas, do ambiente, das estruturas narrativas e da linguagem.
Talvez perseguisse o ideal do poeta italiano Giacomo Leopardi, cujo milagre, segundo Calvino, “consistiu em aliviar a linguagem de todo o seu peso, até fazê-la semelhante à luz da lua” (Calvino, 1990 p.36)
Reconhecendo a leveza sempre como uma oposição ao peso, ele esclarece que diante da inércia e petrificação do mundo, devemos sempre, à maneira do herói Perseu, que vence a monstruosa Medusa, observando-a através do reflexo de seu escudo, buscar uma visão indireta das coisas, procurar outros ângulos, outras perspectivas acerca do mundo, sem que com isso recusemos a realidade.
Calvino encontra nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo.
“À maneira de Perseu eu deveria voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle” (Calvino 1990 p.19).
Com o poeta e filósofo Lucrécio, descobrimos um mundo constituído de pequenas partículas, infinitamente minúsculas, móveis e leves. O poeta dissolve a compacidade do mundo; já em Ovídio, com suas fábulas mitológicas, percebemos os tênues envoltórios que diferenciam a diversidade de cada coisa, todas constituídas de uma mesma substância, que se transformam se agitadas por uma profunda paixão.
Aqui encontramos a estrutura que poderá nos guiar em nossas escolhas:
- A existência da leveza sempre em oposição ao peso;
- O olhar atento, que sempre busca outros ângulos e outras perspectivas acerca do mundo, recusando com isso uma visão direta e óbvia das coisas (o peso), buscando, ao contrário, as sutilezas e elementos delicados (a leveza) que se opõem e resistem ao peso;
-A vida como matéria prima, como fonte de inspiração de toda criação, onde precisamos retirar-lhe o peso, dissolver sua materialidade para que possamos encontrar a leveza, ou ainda, perceber o movimento das coisas e de sua continua passagem de uma coisa a outra.
Em “Picolo Testamento” de Eugenio Montale, ele aponta a maneira deste poeta extrair elementos delicados de um universo árido e apocalíptico, onde se reconhece a “fé na persistência do que há de mais aparentemente perecível, e nos valores morais investidos nos traços mais tênues”. (Calvino, 1990 p. 18).
Em Milan Kundera (A Insustentável leveza do Ser) Calvino reconhece a vivacidade e a mobilidade da inteligência, como talvez, as únicas qualidades capazes de escapar da condenação ao peso.
Visitando Boccaccio, em Decamerão, nos deparamos com o poeta Guido Cavalcanti, que segundo Calvino, oferece a imagem que deveria ser o reflexo do novo milênio.” O salto ágil e imprevisto do poetafilósofo, que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que a sua gravidade detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados” (Calvino 1990 p.23).
Calvino nos diz ainda que, ao se deter em Cavalcanti, fica claro que a leveza está associada à precisão e a determinação, nunca ao que é vago e aleatório. (Calvino 1990 p28).
O próprio Cavalcanti, em seus poemas, nos dá três acepções distintas que exemplificam a leveza:
· “Um despojamento da linguagem por meio do qual os significados são canalizados por um tecido verbal quase imponderável, até assumirem essa mesma rarefeita consistência”.
· “A narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis, ou qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração”.
· “Uma imagem figurativa da leveza que assuma um valor emblemático”.
De Guido Cavalcanti, Calvino nos leva à Renascença Shakespeariana com sua filosofia oculta, rica em imagens que simbolizam as forças naturais e sutis da natureza.
Seguindo adiante, nos deparamos com a célebre imagem de D. Quixote, de Cervantes, cravando a lança de um moinho de vento.
Calvino cita também Cyrano de Bergerac, que nos mostra “como faltou muito pouco para que o homem não fosse homem, nem a vida a vida e nem o mundo um mundo” (Calvino 1990 p.32).
Depois de conhecermos um pouco as aventuras do Barão de Munchhausen e de seu desafio às leis da gravidade, seguimos para o final, ilustrado com um conto de Franz Kafka “O Cavaleiro da Cuba”.
Com essa imagem, Calvino nos afirma que “iremos ao encontro do próximo milênio sem esperar encontrar nele dada além daquilo que seremos capazes de levar-lhe. A leveza, por exemplo, cujas virtudes esta conferência procurou ilustrar” Calvino 1990 p44).
http://artehonors.blogspot.com.br/2012/04/leveza-seis-propostas-para-o-proximo.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário